Marcelo Leite – Folha de São Paulo
O Congresso Nacional anda muito ocupado em representar os interesses da bancada ruralista. Não fosse isso, bem que poderia investigar a atuação do Ministério da Saúde no combate à gripe pandêmica, ou suína, causada pelo vírus influenza A (H1N1).
É o que está fazendo o Conselho da Europa (não confundir com o Parlamento Europeu) com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e as autoridades de saúde de seus 47 Estados-membros. Um relatório devastador as acusa de favorecer a indústria farmacêutica no enfrentamento da nova gripe.
A investigação parece necessária, no Brasil, não tanto para desencavar corrupção, preferência nacional, mas o possível desperdício de ao menos parte do R$ 1,3 bilhão na compra de 113 milhões de doses da vacina antigripe. Foram imunizados até a semana passada 73,2 milhões de brasileiros, 37% da população.
Até 8 de maio, 2.115 mortes haviam sido atribuídas no país ao H1N1. Muito menos que as 140 mil vítimas (0,4% de 35 milhões de infectados) que chegaram a ser aventadas na imprensa, depois que a declaração de pandemia pela OMS –exatamente um ano atrás– lançou o mundo numa espiral de previsões alarmistas.
Para comparação: os Estados Unidos vacinaram 24% da população e estimam as mortes em 12.470. A França imunizou 8% e teve meros 312 óbitos. No mundo todo houve cerca de 18 mil vítimas do H1N1, uma cifra baixa, de ordem comparável ao número de mortes causadas pelas gripes sazonais.
O Ministério da Saúde apresenta os números brasileiros como indicadores do sucesso de sua estratégia. Mas eles também sugerem outras hipóteses: 1) Não parece haver relação direta entre cobertura vacinal e proporção de mortes pelo H1N1; 2) Nações desenvolvidas podem ter reagido de modo tecnicamente mais adequado à real gravidade da pandemia.
França X Polônia
Não é fácil tomar decisões no calor da hora. Sobretudo quando entra em cena o espectro da gripe espanhola de 1918, com dezenas de milhões de mortos. O instinto de sobrevivência do político sempre fala mais alto.
O governo francês chegou a contratar a compra de 94 milhões de doses da vacina. Diante da progressão lenta da doença e da letalidade similar à da gripe sazonal, conseguiu cancelar a compra de 50 milhões de doses, que terão sido destinadas a outros países. O Brasil, quem sabe?
Mais sangue frio teve a ministra da Saúde da Polônia, destaca o documento do Conselho da Europa. Médica, Ewa Kopacz chegou a identificar um grupo de risco com 2 milhões de pessoas e reservou fundos para comprar o número correspondente de vacinas. Logo recuou, contudo, diante das condições leoninas dos fabricantes.
Em primeiro lugar, só o governo poderia adquirir as vacinas. Em segundo, ele teria de se responsabilizar sozinho por possíveis efeitos colaterais. Por fim, o preço seria duas a três vezes maior que o de vacinas para a gripe sazonal.
A França micou com uma conta de R$ 800 milhões pelas vacinas. Imunizou só 5,7 milhões de pessoas. Tem 25 milhões de doses em estoque cujo prazo de validade vai só até o final do ano.
O papelão da OMS
Na mira do Conselho da Europa e de publicações médicas como o “British Medical Journal” está o papel desempenhado pela OMS na propagação do alarmismo. São duas as suspeitas contra o órgão: 1) mudar a definição de “pandemia” para facilitar a declaração; 2) ocultar conflitos de interesse de especialistas aos quais recorreu.
No primeiro caso, incluir a gripe suína na condição pandêmica era de interesse óbvio para a indústria farmacêutica. Fabricantes de vacinas tinham contratos “dormentes” com vários governos, prevendo garantia de compra e venda caso a pandemia fosse declarada pela OMS.
Isso ocorreu no dia 11 de junho de 2009, quando o H1N1 estava presente em 74 países (chegaria ao total de 214). Acontece que, até 4 maio de 2009, a disseminação geográfica não era a única condição para se declarar uma pandemia.
A definição antiga rezava: “Uma influenza [gripe] pandêmica ocorre quando surge um novo vírus influenza contra o qual a população humana não tem imunidade, resultando numa epidemia mundial com números enormes de mortes e doentes”
A nova definição, adotada no texto “Prontidão e Resposta à Influenza Pandêmica: Um Documento de Orientação da OMS”, passou a dizer: “Uma pandemia é uma epidemia mundial da doença. Uma pandemia de influenza pode ocorrer quando surge um novo vírus influenza contra o qual a população humana não tem imunidade… Pandemias podem ser suaves ou graves, e a gravidade da pandemia pode mudar no curso dessa pandemia”.
Especialistas ouvidos pelo periódico médico “BMJ” disseram que a gripe suína só pode ser declarada pandemia graças a essa nova definição. Os números modestos de mortos, à luz da categoria antiga, não autorizariam o passo dado, que desencadeou o tsunami de notícias alarmistas.
“O problema não está tanto no fato de que divulgar incertezas é difícil, mas sim que a incerteza não foi divulgada”, ponderou Gerd Gigerenzer ao “BMJ”. “Não havia base para a estimativa da OMS de 2 bilhões de casos prováveis de H1N1, e sabíamos pouco sobre os benefícios e danos da vacinação. A OMS manteve a estimativa de 2 bilhões mesmo depois de a estação de inverno na Austrália e na Nova Zelândia ter mostrado que só 1 ou 2 pessoas em mil eram infectadas.”
US$ 10 bilhões de lucro
Segundo projeções do banco J.P. Morgan citados no relatório do Conselho da Europa, a indústria farmacêutica pode ter lucrado entre US$ 7 bilhões em US$ 10 bilhões adicionais, em 2009, com as vendas de vacinas contra o H1N1. Havia muita coisa em jogo, além da saúde da população mundial, na decisão de declarar a pandemia.
A declaração foi feita pela diretora da OMS, Margaret Chan, com a ajuda de um Comitê de Emergência de 16 membros cujos nomes permanecem até hoje em segredo. Com exceção de um: Arnold Monto.
O “BMJ” confirmou que Monto tinha integrado o comitê da pandemia por meio de uma biografia sua na página de internet da Sociedade Norte-Americana de Doenças Infecciosas. O especialista já declarou no passado ter recebido honorários por palestras da empresa GlaxoSmithKline, fabricante do antiviral zanamivir (Relenza), um dos que os governos passaram a estocar às dezenas e centenas de milhões de comprimidos.
A OMS vem se negando, porém, a tornar públicos os documentos de admissão de conflito de interesses que seus especialistas são obrigados a preencher, de acordo com diretrizes da organização. Afirma que a definição de pandemia nada tem a ver com quantidade de mortes, defende a necessidade de interagir com a indústria e atribui todas as suspeitas a “teorias de conspiração”.
Uma reação “decepcionante”, vaticinou o “BMJ” num editorial. Como seria a reação do Ministério da Saúde brasileiro, se o Congresso se dignasse investigar sua conduta?
O Congresso Nacional anda muito ocupado em representar os interesses da bancada ruralista. Não fosse isso, bem que poderia investigar a atuação do Ministério da Saúde no combate à gripe pandêmica, ou suína, causada pelo vírus influenza A (H1N1).
É o que está fazendo o Conselho da Europa (não confundir com o Parlamento Europeu) com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e as autoridades de saúde de seus 47 Estados-membros. Um relatório devastador as acusa de favorecer a indústria farmacêutica no enfrentamento da nova gripe.
A investigação parece necessária, no Brasil, não tanto para desencavar corrupção, preferência nacional, mas o possível desperdício de ao menos parte do R$ 1,3 bilhão na compra de 113 milhões de doses da vacina antigripe. Foram imunizados até a semana passada 73,2 milhões de brasileiros, 37% da população.
Até 8 de maio, 2.115 mortes haviam sido atribuídas no país ao H1N1. Muito menos que as 140 mil vítimas (0,4% de 35 milhões de infectados) que chegaram a ser aventadas na imprensa, depois que a declaração de pandemia pela OMS –exatamente um ano atrás– lançou o mundo numa espiral de previsões alarmistas.
Para comparação: os Estados Unidos vacinaram 24% da população e estimam as mortes em 12.470. A França imunizou 8% e teve meros 312 óbitos. No mundo todo houve cerca de 18 mil vítimas do H1N1, uma cifra baixa, de ordem comparável ao número de mortes causadas pelas gripes sazonais.
O Ministério da Saúde apresenta os números brasileiros como indicadores do sucesso de sua estratégia. Mas eles também sugerem outras hipóteses: 1) Não parece haver relação direta entre cobertura vacinal e proporção de mortes pelo H1N1; 2) Nações desenvolvidas podem ter reagido de modo tecnicamente mais adequado à real gravidade da pandemia.
França X Polônia
Não é fácil tomar decisões no calor da hora. Sobretudo quando entra em cena o espectro da gripe espanhola de 1918, com dezenas de milhões de mortos. O instinto de sobrevivência do político sempre fala mais alto.
O governo francês chegou a contratar a compra de 94 milhões de doses da vacina. Diante da progressão lenta da doença e da letalidade similar à da gripe sazonal, conseguiu cancelar a compra de 50 milhões de doses, que terão sido destinadas a outros países. O Brasil, quem sabe?
Mais sangue frio teve a ministra da Saúde da Polônia, destaca o documento do Conselho da Europa. Médica, Ewa Kopacz chegou a identificar um grupo de risco com 2 milhões de pessoas e reservou fundos para comprar o número correspondente de vacinas. Logo recuou, contudo, diante das condições leoninas dos fabricantes.
Em primeiro lugar, só o governo poderia adquirir as vacinas. Em segundo, ele teria de se responsabilizar sozinho por possíveis efeitos colaterais. Por fim, o preço seria duas a três vezes maior que o de vacinas para a gripe sazonal.
A França micou com uma conta de R$ 800 milhões pelas vacinas. Imunizou só 5,7 milhões de pessoas. Tem 25 milhões de doses em estoque cujo prazo de validade vai só até o final do ano.
O papelão da OMS
Na mira do Conselho da Europa e de publicações médicas como o “British Medical Journal” está o papel desempenhado pela OMS na propagação do alarmismo. São duas as suspeitas contra o órgão: 1) mudar a definição de “pandemia” para facilitar a declaração; 2) ocultar conflitos de interesse de especialistas aos quais recorreu.
No primeiro caso, incluir a gripe suína na condição pandêmica era de interesse óbvio para a indústria farmacêutica. Fabricantes de vacinas tinham contratos “dormentes” com vários governos, prevendo garantia de compra e venda caso a pandemia fosse declarada pela OMS.
Isso ocorreu no dia 11 de junho de 2009, quando o H1N1 estava presente em 74 países (chegaria ao total de 214). Acontece que, até 4 maio de 2009, a disseminação geográfica não era a única condição para se declarar uma pandemia.
A definição antiga rezava: “Uma influenza [gripe] pandêmica ocorre quando surge um novo vírus influenza contra o qual a população humana não tem imunidade, resultando numa epidemia mundial com números enormes de mortes e doentes”
A nova definição, adotada no texto “Prontidão e Resposta à Influenza Pandêmica: Um Documento de Orientação da OMS”, passou a dizer: “Uma pandemia é uma epidemia mundial da doença. Uma pandemia de influenza pode ocorrer quando surge um novo vírus influenza contra o qual a população humana não tem imunidade… Pandemias podem ser suaves ou graves, e a gravidade da pandemia pode mudar no curso dessa pandemia”.
Especialistas ouvidos pelo periódico médico “BMJ” disseram que a gripe suína só pode ser declarada pandemia graças a essa nova definição. Os números modestos de mortos, à luz da categoria antiga, não autorizariam o passo dado, que desencadeou o tsunami de notícias alarmistas.
“O problema não está tanto no fato de que divulgar incertezas é difícil, mas sim que a incerteza não foi divulgada”, ponderou Gerd Gigerenzer ao “BMJ”. “Não havia base para a estimativa da OMS de 2 bilhões de casos prováveis de H1N1, e sabíamos pouco sobre os benefícios e danos da vacinação. A OMS manteve a estimativa de 2 bilhões mesmo depois de a estação de inverno na Austrália e na Nova Zelândia ter mostrado que só 1 ou 2 pessoas em mil eram infectadas.”
US$ 10 bilhões de lucro
Segundo projeções do banco J.P. Morgan citados no relatório do Conselho da Europa, a indústria farmacêutica pode ter lucrado entre US$ 7 bilhões em US$ 10 bilhões adicionais, em 2009, com as vendas de vacinas contra o H1N1. Havia muita coisa em jogo, além da saúde da população mundial, na decisão de declarar a pandemia.
A declaração foi feita pela diretora da OMS, Margaret Chan, com a ajuda de um Comitê de Emergência de 16 membros cujos nomes permanecem até hoje em segredo. Com exceção de um: Arnold Monto.
O “BMJ” confirmou que Monto tinha integrado o comitê da pandemia por meio de uma biografia sua na página de internet da Sociedade Norte-Americana de Doenças Infecciosas. O especialista já declarou no passado ter recebido honorários por palestras da empresa GlaxoSmithKline, fabricante do antiviral zanamivir (Relenza), um dos que os governos passaram a estocar às dezenas e centenas de milhões de comprimidos.
A OMS vem se negando, porém, a tornar públicos os documentos de admissão de conflito de interesses que seus especialistas são obrigados a preencher, de acordo com diretrizes da organização. Afirma que a definição de pandemia nada tem a ver com quantidade de mortes, defende a necessidade de interagir com a indústria e atribui todas as suspeitas a “teorias de conspiração”.
Uma reação “decepcionante”, vaticinou o “BMJ” num editorial. Como seria a reação do Ministério da Saúde brasileiro, se o Congresso se dignasse investigar sua conduta?
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marceloleite/747637-o-conto-da-vacina-suina.shtml
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Abraço.